domingo, 18 de outubro de 2009

Lar

Ninguém viu como o forte fora invadido. A maior parte dos soldados se deu conta apenas quando a morte já havia começado a gritar, próxima demais para ser evitada. Os invasores eram disciplina e eficiência. A primeira bala só foi disparada depois que as seguintes eram inevitáveis.

Havia ali um soldado, incompleto em seu coração, como qualquer outro. Carregava no peito um vazio antigo. Um vazio que não seria incômodo se nunca tivesse sido preenchido. Se lembrava de um tempo em que as coisas eram agradavelmente complicadas. Mil possibilidades. Eram muitos os caminhos que tinha pela frente, e a indecisão era suficiente para fazê-lo feliz e ocupar seu futuro. Depois que tudo fora tirado ainda mais estradas se abriram – todas na verdade. E as escolhas acabaram. Só o que restara era seguir em frente. Não importava mais que caminho trilhasse.

Reagiu a tempo. Atuara como sentinela por três anos e tinha o que precisava para ser promovido além desta função. Ele tinha a Visão, como eles chamavam aquele sentido que nos alerta do perigo eminente antes deste o ser. Com os calcanhares golpeou a grade de metal sobre a qual se encontrava, projetou-se de forma a conseguir alcançar o corrimão da plataforma superior – a tempo de evitar a rajada de chumbo que tomou a vida de seus dois companheiros, que não tinham a Visão. Ao cair, pisando em terreno não firme – carne – disparou seu rifle contra as sombras. Quatro inimigos eliminados, duas baixas. Estava em vantagem, mas ainda não era uma matemática que lhe agradava.

Treinou a vida inteira para momentos como aquele, sempre ansiando por fazer valer sua habilidade, mas sempre que o fazia desejava nada tivesse acontecido, que fosse apenas umas das suas fantasias de garoto. Realizou incontáveis movimentos iguais, inúmeras vezes, mas agora não repetia nenhum. Cada ato, cada gesto, cada reação era inédita. Seguiu em frente, contornando a morte da mesma maneira que um rio evita rochas, as envolvendo e as tomando como parte de seu fluxo, com a diferença que às suas margens nada brotava – perecia.

O cheiro do couro foi o que o alertou desta vez, não a Visão. Os soldados daquele lado não possuíam nada de couro além de seus coturnos, todos velhos – só podiam ser os invasores. Eles tinham motivos para ostentar orgulho naquela guerra. Havia um vão na parede, em que um homem do seu tamanho poderia entrar lado, mas deixando parte dos ombros à vista. Para enxergar não era necessário apenas luz, mas a conexão com o objeto, e isso aqueles dois soldados não tinham. Passarem reto por ele e tombaram antes que dessem três passos adiante.

Não restara mais nada do seu passado, o que não era o caso dos outros. Isso lhe conferia uma vantagem. Não importavam as ambições de um homem em meio a guerra. Nem o que deixara para trás. Nem seus amores. Nada importava. Naquela altura da guerra, nem as razões da mesma – era apenas uma questão de sobreviver. Ou matar. Numa dança sem emoção, ele bailava entre colunas e tiros, entre missões e sonhos – todos alheios. Ele não pararia até que o seu corpo fosse o único ainda fresco naquele forte.

Atravessar o pátio central seria suicídio, mas ele já era um cadáver, não haveria chances de sobreviver entocado na Ala Leste e suas poucas janelas gradeadas. O inimigo teria todo o tempo do mundo, assim como os explosivos que tomara junto da base. Não sabia quantos restavam e nem quanto miravam o caminho que percorreria. Os tiros que soaram foram o sinal que precisava. Não seguiu em linha reta. Ziguezagueou em volta dos veículos e caixas, atirando sempre que sua arma ouvia um chamado, e antes de passar da metade do percurso, ouviu o clique do fim da munição, e já era seu segundo carregador. O último. Seguiu pelo restante do caminho sem disparar, evitando as trajetórias mais prováveis de balas. Já estava próximo à entrada da Ala Oeste e viu que não passaria pela porta sem que o soldado que estava na plataforma sobre ela lhe atingisse e, com um mergulho, se lançou ao corpo de um inimigo que tombara lá de cima há pouco – sem saber se por suas balas ou não –, alcançou a arma que ele carregava à cintura e disparou três vezes. O grosso calibre fez com que caíssem os miolos nele, além dos pedaços de osso e sangue. Estava muito próximo e agora o cheiro poderia denunciá-lo, teria que ser mais rápido. Achou curioso usarem armas daquele porte numa missão de assalto.

Tudo não durou mais que o tempo de uma cópula. Ouvir o som das cigarras lhe atentou para o fato que era o único sobrevivente. Rostos em silêncio jaziam aos seus pés. Pela primeira vez em anos algo lhe preenchia. O odor de morte lhe acariciou as narinas e ele se sentiu completo de uma forma diferente, como nunca fora. Não era melhor do que no tempo em que era feliz, mas por alguma razão agora se sentia em casa.

Livre

Outro membro. Ansiosa, abocanhou, sedenta pelo sabor da liberdade. Não era muito diferente de antes. Talvez fosse pior. O cheiro mais forte, uma deformidade na base da cabeça – ela se lembrou do primeiro. Não era hora de pensar nisso. O cacete em si não era a questão, mas como ele seria usado.

A penetração não doeu. Não sentiu aquele ardor agradável. Já estava muito excitada para isso, e as repetidas entradas que se seguiram a surpreenderam apenas porque eram normais, sem nada de diferente, talvez o novo.

Fez posições que, apesar de não estar acostumada, não eram inéditas. Boca, língua, bolas, bunda, dedos – tudo novo, mas uma sensação de mesmo, vazio.

Depois, deitada ao lado do sujeito apaixonado, recordou toda uma vida em que realizara aquele ato, com constância e ardor, sempre ansiosa por mais. Um tempo em que a única preocupação era esperar a próxima situação propícia ou que o pinto amado se levantasse, pronto novamente para adentrá-la. Ainda poderia ter muito sexo. Aliás, era melhor que antes - tinha para si todos os caralhos do mundo.

Apesar de tudo, lembrou-se dele até seu último dia trepando.