quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Abreviações

Pronto, ele já entregara a “caixinha de divórcio” à ela. Tirar da vista os vestígios físicos dela era necessário para recomeçar a vida. Não devolveu os presentes, o que seria indelicado, mas as coisas dela – da escova de dentes até a lingerie favorita – deveriam ir embora com ela. Ele tinha uma cicatriz que fez quando foi ampará-la num tropeço que ela deu quando faziam uma trilha. Ficava num lado das costas. Quanto à este vestígio ele não sabia ainda o que fazer, mas estava pensando numa tatuagem pra cobri-lo. O encontro era para isso, se livrar destas coisas. Apenas.

Ela achava que devia pelo menos dar as caras para ele, depois de que começou a sair com um cara que conheceu no curso de pintura e apenas ligou para dizer que tudo acabara e que já estava com outro. Faltou coragem para vê-lo arrasado, como sabia que ele ficaria ao ser dispensado. Era hora de encará-lo. Uma atitude digna, finalmente.

- Você não tem nada a dizer? Digo, além das recomendações para o Flok – o poodle que ele lhe deu no aniversário de três anos de namoro.

Uhm. Não.

– Não mesmo? Puxa, passei dias me preparando para isso. Você só queria me dar a caixinha?

– Bom, tem uma coisa sim. Aquela mensagem que você me mandou...

Ela sabia que devia tomar mais cuidado. Esperar um pouco mais antes de marcar o encontro. Escrever de modo mais frio. A mensagem que enviara no celular parecia com as que ela mandava no tempo em que estavam juntos. Fez tudo automaticamente. Que mancada. O lugar também foi uma falta de sensibilidade. Onde eles tomavam mate juntos ali, no fim da tarde. Quase toda tarde...

– Olha, eu não quis dizer nada de mais com ela, tudo bem? Foi só para a gente combinar de se encontrar. Se foi cedo demais...

– Não, não é disso que eu estou falando. Você lembra como ela terminava?

Ãh? Er... “Beijos”?

– Sim, mas pega o seu celular aí. Isso, olhe só como está escrito.

Oi podemos nos encontrar hj no super mate da pça dos cisnes? 18h. Sdd. Bjos.

– Vê esse seu “Bjos”?

– O que é que tem?

– Nunca mais faça isso. Beijos são para serem dados inteiros. Não é a toa que ele é parte inevitável no intercurso do amor! Abreviar um beijo é como... Uhm... – olhou para cima – Compor um martelo agalopado sem o último peônio.

– O que?! – Ele se esquecia ás vezes que nem todo mundo era formado em Letras ou escrevia poesias, como ele. Ela sempre implicou com isso, mas, por outro lado, também aprendia muito.

– É como ir à Cuzco e não passar por Machu Picchu. – Ele só queria se fazer entender. Ela que fosse num dicionário descobrir o que é um peônio.

– Entendi. Nossa mas...

– Sabe, algumas coisas não se deve abreviar. Beijos, sexo, amor são as principais. Sentimentos em geral. Exceto pelo ódio talvez, afinal numa dessas de fazê-lo por extenso você pode acabar matando alguém. – coçou o cavanhaqueCornetto também não podemos abreviar. Imagina só não comer a pontinha de chocolate? – Eles sempre disputavam o final do sorvete dele. Nos seus dias mais românticos ele cedia à ela. Os dela ela sempre comia. Naturalmente.

– Que bonito isso... – Piiii , apitou violentamente o celular. Era uma mensagem do novo namorado perguntando se ela chegaria na Temakeria à tempo. – Nossa, foi ótimo te ver, mas eu preciso ir.

Levantou-se rápido e ficou na dúvida se lhe dava ou não um beijo na bochecha. Não lembrava de tê-lo feito nos últimos quatro anos. Para que se tinha a boca? Passado um instante constrangedor, ajeitou a bolsa no ombro e saiu caminhando em passo firme, tomando cuidado para não tropeçar com a sandália de salto que escorregava nas pedras do caminho.

Tchau! – Ele acenou enquanto terminava seu mate com menta.

---

Piiii. Era o celular dele.

Olá! Foi ótimo lhe ver hoje. Fazia tempo que eu não tomava aquele mate. Se estiver afim de ir lá de novo me avise, ok? Beijos.

Ele guardou o celular e sorriu.

6 comentários:

  1. Créditos - Raquel , por seus sagazes comentários sobre minha vida.

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  2. Pâmela! Você por aqui! Seja bem vinda!

    Ela mesma! A Torres!

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  3. Texto para uma separação - Elisa Luncida
    "Olhe aqui, olhos de azeviche. Vamos acertar as contas porque é no dia de hoje que você vai embora daqui... Mas antes, por obséquio: Quer me devolver o equilíbrio? Quer me dizer por que você sumiu? Quer me devolver o sono, meu doril? Quer se tocar e botar meu marcapasso pra consertar? Quer me deixar na minha? Quer tirar a mão de dentro da minha calcinha? Olhe aqui, olhos de azeviche. Quer parar de torcer pelo meu fim dentro do meu próprio estádio? Quer parar de saxdoer no meu próprio rádio? Vem cá, não vai sair assim... Antes, quer ter a delicadeza de colar o meu espelho? Assim: agora fica de joelhos e comece a cuspir todos os meus beijos. Isso. Agora recolhe! Engole a farta coreografia dessas línguas. Varre com a língua estes anseios. Não haverá mais filho, pulsações e instintos animais. Hoje eu me suicido ingerindo sete caixas de anticoncepcionais. Trata-se de um despejo. Dedetize essa chateação que a gente chamou de desejo. Pronto: última revista. Leve também essa bobagem que você chamou de amor à primeira vista. Olhas de azeviche, vem cá. Apague esse gosto de pescoço da minha boca! E leve esses presentes que você me deu, essa cara de pau, essa textura de verniz. Tire também esse sentimento de penetração, esse modo com que você me quis. Esses ensaios de idas e voltas, essa esfregação, esse Bob Wilson erotizado que a gente chamou de tesão. Pronto. Olhos de azeviche, pode partir! Estou calma. Quero ficar sozinha eu com a minha alma. Agora pode ir. Gente! Cadê minha alma que estava aqui?"

    (PS: cuidei para naum abreviar nenhuma palavra enquanto escrevia...rs)

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  4. abreviações de todo jeito são péssimas. E "BEIJOS" precisam ser dados por inteiro, por todos os lados!

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